18 de setembro de 2014

Resenha do Filme: Praia do Futuro

Por Eripetson Lucena

A autoestrada alemã no final de “Praia do Futuro” em muito pouca coisa difere da BR que arranca Hermila do Iguatu, no lindíssimo “Céu de Suely”. Karim Ainouz metaforiza a fuga de seus personagens e as consubstância nas muitas rodagens, estradas e caminhos de seus maravilhosos filmes. As fugas só se tornam geográficas por que se processaram muito antes nos foros mais particulares.

É de fato muitíssimo sintomático que um filme como este, que versa tão eficazmente sobre auto reinvenção, ressignificação, inadequações, migrações geográficas e psicológicas, seja relegado a um limbo de películas “infames” por causa de cenas de sexo. Que rasteiro e hipócrita só haver olhares pra elas, quando a maestria de Ainouz transforma os deslocamentos de dois náufragos da existência em um exercício narrativo que explicita (mais que o sexo, num grafismo absolutamente necessário ao fluir da narrativa) tanta sensibilidade e perícia.

Do título (inclusive da forma como é mostrado no inicio e depois no final da projeção), a sequencias-metáforas como a que os bombeiros se exercitam e treinam na areia da praia brasileira, que vai de um exalar da masculinidade que se dimensiona em suas fisicalidades nesta sequencia e que se coloca psicologicamente no traçar de percepções amorosas ora robustas, ora esquálidas; nesta mesma riquíssima sequencia, Donato, personagem de Wagner Moura, corre junto aos comparsas pra um mergulho no oceano, mas hesita até quase ficar paralisado pelo temor da imensidão azul, retratando talvez a importância dos passos que se seguiriam no filme, quando ele migra pra Berlin, deixando pra trás mãe e um irmão pequeno.

Outros momentos elegantes se devem, em sua construção e como estratégia de linguagem esplendida, ao fato de Ainouz se alinhar a um modo europeu de elaborar suas elipses: já que os planos sequencia são econômicos com diálogos, a opção do diretor sempre é o corte abrupto rumo a um quadro que, ao invés de explicado, é entregue em crueza e assombro. Quem procura um romance pueril, vai se deparar com um filme adulto e muito pouco comprometido em emocionar. Isso, no entanto conta a favor do filme. A música belíssima (muito bem utilizada, que não serve aqui como elemento de condescendência), a história tripartida de forma muito mais elicitativa que explicativa (o filme é dividido em tres capítulos), a reinserção do personagem do irmão mais novo de Donato (vivido por Jesuita Barbosa) que introduz uma problematização para além do universo particular do casal envolvido são atributos de uma atomicidade emocional considerável, mas nunca permitidos pelo roteiro amarradinho a resvalar para a caricatura ou o pieguismo.

“Praia do Futuro” é um material de transcendência. O microcosmo das relações afetivas, aqui um casal homossexual, é exposta e transposta ao passo que a naturalidade com que o tema é tratado é um claro sinal de respeito e de maturidade cinematográfica e que faz a tarja colocada por cinemas brasileiros “avisando” os expectadores que o filme continha cenas de sexo gay soar inacreditavelmente conservadora. E burra.

A verdade é que poucos diretores brasileiros são tão peritos e ao mesmo tempo sensíveis como Karim Ainouz. Ele construiu para si uma filmografia solida que se inicia com o impressionante “Madame Satã”, uma verdadeira aula de cinema em qualquer idioma, consolida-se em “Céu de Suely” um dos filmes brasileiros mais importantes da década passada, e agiganta-se a cargo deste fantástico “Praia do Futuro”. Um filme que destila uma arquitetura magnifica e coloca o cinema nacional, a exemplo do que tem feito o notável novo cinema pernambucano, em evidência no circuito de cinema de arte e de autor.

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