27 de fevereiro de 2014

Resenha do Filme: 12 Anos de Escravidão

Por Eripetson Lucena

É particularmente vergonhoso o fato de que nenhum diretor americano, classe não raro perdida em meio a devaneios megalomaníacos e ufanistas, nunca tenha se incomodado em contar a história de Solomon Northup. Imagino que o apelo humanitário de uma história tão poderosa, tenha afetado um diretor inglês não apenas pelo fato dele ser negro, mas pela estupefação de imaginar um mundo (não só os Estados Unidos da América) sem um filme como “12 Years a Slave”. Pois creiam, o tema da escravidão acaba de ser redefinido na história do cinema. Faz as investidas anteriores parecerem trabalho de amadores, sem muito alcance ou verossimilhança.

O nível de dramaturgia alcançado pelo filme de McQueen é extraordinário. E o tratamento dado por ele às fortíssimas sequencias de castigo é incrivelmente digno, uma vez que suavizar temas como escravidão seria incorrer em indecência e desonestidade. O que se coloca como convenção no imaginário popular, fomentado pelos livros de história ou pelas ingênuas versões cinematográficas da escravidão na América, é contestado enquanto representação por sequencias como a que a escrava Patsey, personagem de Lupita Nyong’o é barbaramente punida. Difícil de ver e de esquecer.

O que falta a maioria dos cineastas que resolvem tratar temas polêmicos é o que sobra em McQueen: senso, tato e perícia. “Hunger” e “Shame” que o digam. Parte dessa espertice é destilada nos longos planos sequencias onde os closes e a câmera fixa nos personagens por longos minutos (vide especialmente “Hunger”) acabam se tornando recurso narrativo dos mais eficientes; em “Hunger” e em “12 Years a Slave” é como se o olho mecânico fosse a própria morte a espreita, humilhando com o olhar insistente, esperando o personagem morrer de fome ou de tortura. No caso de “12 Years…” a dor retratada pela câmera de McQueen, encrudescida pelo olhar de silencioso desespero de Chiwetel Ejiofor não parece dar trégua. Há um enquadramento em particular, onde Eijofor está em primeiro plano, em pungente estupefação e chega a olhar para a câmera, fazendo um movimento com a cabeça. Remete ao que fez Paul Thomas Anderson, na última sequencia de “Magnólia” onde a personagem de Melora Walters faz o mesmo movimento (a diferença é que, se não me engano, o plano é americano), mas sorri quando olha para a câmera. Para um filme que versa sobre sucessivas tragédias de cunho pessoal, “Magnólia” acaba, com aquele sorriso de sua personagem mais emblemática, da forma mais otimista possível.

McQueen enrijece seu Solomon na dor mais primordial, exatamente nesta sequencia, quando ele contempla você e eu e se coloca como peça da inexorável escravidão. O elenco é competentíssimo. Michael Fassbender, antigo colaborador de McQueen, laureado pelo que conseguiu alcançar no estupendo “Shame”, parece encarar um papel maior que ele mesmo. Talvez o mais desafiador de todo o filme, dado a fácil armadilha do maniqueismo. Nyong’o e Eijofor desequilibram a tríade formada com Fassbender (e ainda a sutileza da crueldade da esposa criada por Sarah Paulson, que se coloca como uma sombra velada em contrapartida à malevolência gráfica de Fassbender) com dor e sofrimento extremos. Os três serão facilmente indicados ao Oscar. Nada mais justo em um filme de grandes interpretações.

Enfim, para além do aparato técnica (a fotografia é extraordinária, belíssima), “12 Years a Slave” é um triunfo pelo seu valor quase educativo, didático, como é importante o relato biográfico de Solomon Northup, no qual o filme é baseado. Ergue-se portentoso como uma extraordinária “testemunha” numa era onde o racismo ainda operacionaliza parte das querelas relacionais de nosso tempo. Um filme colossal.

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