10 de junho de 2014

Resenha do Filme: Além das Montanhas

Por Eripetson Lucena

O cinema Romeno é inebriante. O que os realizadores daquele país estão fazendo revisitando seu passado recente, numa autocrítica pungente e as vezes bem humorada dos idos tempos do comunismo, é algo de fascinante. Leia-se “A Leste de Bucareste”, “Tales from the golden age” “Policia: adjetivo” dentre muitos, muitos outros. Cristian Mungiu tem um papel importante nesta consolidação: o seu “4 meses, 3 Semanas e 2 Dias” tomou o Festival de Cannes de assalto em 2007, sendo uma unanimidade pouco vista nas edições daquele conceituado Festival.

“4 meses...” é uma brilhante fábula que se passa na Bucareste dos anos 80, quando uma jovem, auxiliada por uma amiga resolve submeter-se a um aborto, quando isso, no regime casca grossa do comunista Ceausescu era punido com morte. A critica ao regime não é cega, tão pouco infundada. Os cineastas Romenos, a exemplo de Mungiu, concentram-se nas sutilezas, nos episódios corriqueiros, no cotidiano para versar sobre a brutalidade do comunismo naquela nação. E para isso, eles lançam mão até mesmo do humor. E acreditem, tudo é brilhantismo!

Mungiu retorna com este “Beyond The Hills”, uma critica ferrenha a irracionalidade da Igreja ortodoxa, na Romênia contemporânea. Relações femininas são mais uma vez retratadas, com o tratamento habitual do diretor, câmera estática, imagens escuras (incomodas as vezes, mas justificáveis para adensar o clima sombrio e medieval de um monastério), o não uso de trilha sonora, os diálogos longos e elucidativos, sem muitas concessões ao expectador, ou seja, a linguagem utilizada não serve para facilitar a vida de ninguém e deixa em aberto reentrâncias várias que permitem elaborações variadas e até conflitantes.

O filme conta a história de uma freira que tem uma amiga residente na Alemanha que está enfrentando problemas pessoais. A religiosa convence seus superiores a receber a amiga, estranha para eles, no convento, para que possa ser ajudada pela amiga e pelo suposto espírito pacificador do local. Só que a moça altera de uma forma tão drástica a rotina asceta do local que a hipótese de possessão demoníaca começa a ser considerada pelas religiosas. O que se segue é uma crescente no terror estabelecido no monastério e na irracionalidade que se instala a partir da exibição de sintomas claros de histeria.

Mesmo sem ser uma critica política, como o seu filme anterior, “Beyond the Hills" converte-se em um drama psicológico de primeiríssima linha, sombrio, e incomodo. O que eu acho mais fascinante no roteiros dos filmes Romenos é a ausência de maniqueísmos baratos, usados de forma tão rasteira em tantas produções para angariar prosélitos. Aqui, ninguém é vitimizado ou tiranizado a ponto de não ficarmos estranhamente perturbados em discernir as ações, reações, ou culpabilizações. Se as freiras são engessadas em uma mentalidade religiosa medieval, baseada no cíclico do pecado/terror/culpa/paranoia (nada muito diferente da estrutura neurotizante das igrejas contemporâneas) fomentado pela madre e por um padre ultraconservador, a personagem Alina é extremamente perturbada e apresenta distúrbios psicológicos e frustrações evidenciadas logo nas primeiras tomadas do longa. Ou seja, o diretor mantém um distanciamento tão salutar das principais questões que aborda, que ele se isenta totalmente de julgamentos, quase não deixando ao espectador a opção de julgar ninguém no longa, sejam as freiras, seja Alina.

Qualidade rara no cinema contemporâneo. Há inúmeras outras questões trazidas a reboque nesta história de Mungiu, como por exemplo a tensão sexual existente entre as duas amigas, a natureza do trabalho que as duas iriam fazer na Alemanha, dentre outras. Tudo isso fica a cargo do expectador de perceber e, se quiser, de julgar. Mais um exemplo de imensa maturidade de Mungiu e do extraordinário cinema Romeno. Enquanto isso, nós estamos cá, produzindo “De Pernas Pro Ar 16”, uma notável contribuição, dentre tantas outras, do Brasil ao cinema imbecilizante e descerebrado.

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