23 de fevereiro de 2014

Resenha do Filme: A Praça

Por Eripetson Lucena

O historiador francês Marc Ferro, descrevendo as múltiplas frentes de interferência entre história e cinema coloca que os dirigentes de certa sociedade, compreendendo a função social da feitura dos filmes, tentam se apropriar desta arte para intervir na história. Em maior ou menor grau, isso sempre se verificou. As representações que a sétima arte tenta dar conta (desde que foi devidamente reconhecida enquanto tal) operam, na maioria das vezes de forma muito eficaz como instrumento de doutrinação. A tomada de consciência decorrente deste processo implica na destruição do mito da arte isenta (pois elas estão sempre sujeitas a um agendamento e não é diferente com o cinema) assim como na tentativa de apropriação dos filmes por parte das instituições consagradas.

Neste sentido, com o advento das novas e acessíveis tecnologias e com a possibilidade de se fazer filmes até mesmo através de um telefone celular, o cinema torna-se uma arma poderosa na manutenção do status-quo ou na quebra de paradigmas. O que Ferro chamou de “militante-cameraman” hoje é atualizado como “militante-usuário de um smartphone”. 

Impossível não ecoar as palavras de Ferro quando se assistia “A Praça”, explosivo documentário da Netflix, um dos finalistas na categoria de documentário no Oscar deste ano. Uma candidatura, por assim dizer, cheia de simbolismos, não somente pela atestação das teses do historiador citado, mas pelo poder de alcance extraordinário da TV, que parece se introduzir sorrateiramente no universo hermético do Oscar (uma das únicas instancias que premia filmes a não reconhecer o poder de fogo da Televisão hoje em dia). 

À máxima, “a revolução não será televisionada” acrescenta-se “...mas será vista no youtube” aplica-se ao documentário em questão. Aqui se tem a nítida impressão (e vertigem) de ser colocado através do registro de câmeras de celulares para o olho do furacão, em tempo, a Praça Tahrir, na cidade do Cairo, capital egípcia, o equivalente moderno da “Praça da Paz Celestial” na ruidosa Pequim do final dos anos 80. O povo, munido de seus gadgets, tomou o lugar em 2011, e praticamente não mais o deixou até 2013, não apenas derrubando o Presidente da época Hosni Mubarak, mas estendendo os tentáculos de suas conquistas homéricas até os anos seguintes, quando também derrubaram uma junta militar e depuseram outro Presidente. Isso, é claro, a custo de muita opressão e sangue. 

O tratamento que uma obra de ficção receberia, caso uma história poderosa como esta fosse adaptada, não diria nem infimamente das doses cavalares de realismo que este documentário carrega. A montagem sensibilíssima (e difícil, pois haveria de se construir uma linha narrativa consistente a partir de centenas de horas de gravações de celulares durante mais de 3 anos) observa a lição dourada apreendida pelos bons roteiros de cunho politico (mesmo que na ficção): humanizar as figuras. Os bons thrillers políticos fazem isso, por que sinceramente, ir ao cinema pra ser doutrinado ou ouvir discurso politico é chato e irrelevante. Daí, o doc se fragmenta em diversos núcleos de personagens, acompanhando eficientemente suas trajetórias, seja de um jovem militante idealista a um membro da radical Irmandade Muçulmana, cujo oportunismo é deflagrado em cheio pelo filme. 

O impressionante em um filme como este é a lucidez em transformar o grafismo das imagens em elementos elucidatórios da Revolução Egípcia. O diretor Jehane Noujaim, justificado pela crueza da realidade que pretende mostrar sem maquiagem, não torna os testemunhos visuais, embora que muito chocantes, em um desnecessário festival de atrocidades. Se ele lança alguma lantejoula no “modus operandi” dos manifestantes, é porque o poder que demanda do povo, é uma onda incontrolável que se avoluma em consonância com aos níveis de opressão sofrida naquele país. Neste aspecto, o documentário não é inocente, assim como nenhum filme o é, mas não pode ser acusado de leviandade ou incongruência ante as vozes que deseja amplificar.

Ao final da sessão, o espectador atento se dará conta que o último intuito de Noujaim é chocar. Ele deseja lançar luz e, claro, disso decorre posicionamentos ideológicos também. Mas não sem produzir antes conflitos e desconfortos. Este não é um dos papeis do bom cinema? Pois como (todo) produto cultural, “A Praça” se posiciona com eficácia, mas não abre mão do seu valor artístico em detrimento da panfletagem. Um belo filme.

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