16 de março de 2014

Resenha do Filme: O Som ao Redor

Por Eripetson Lucena

Há uma sequencia emblemática de “Magnólia”, filme de Paul Thomas Anderson quando o diretor americano concede uma das duas pausas esdrúxulas na narrativa do filme para mostrar uma improvável e descabida chuva de sapos. O choque causado pela bizarrice dá lugar a compreensão que o recurso extraordinário cabe perfeitamente dentro da exposição do cotidiano, o(a)bjeto-mor do qual se ocupa o filme inteiro. Mais que qualquer outra, a fala do garoto prodígio que é obrigado a participar de um programa de perguntas e respostas sintetiza as quase três horas de esplendida projeção do filme de Anderson.

O garoto-gênio, capaz de responder a todas as perguntas sem pestanejar, mas que sucumbe diante de uma necessidade fisiológica, contempla os enormes anfíbios caírem do céu enquanto ler calmamente o seu livro e diz: é, isso acontece. E volta a compenetração de sua leitura sem deixar que o acontecimento fantástico altere sua rotina. Ele parece ser o único personagem que se dá conta de que o cotidiano, esse artifício infernal e diabólico, é muito mais desnorteante, escandaloso, demonizante que o sobrenatural.

Assim como “Magnólia”, o filme de estreia do pernambucano Kleber Mendonça Filho, critico de cinema e diretor de alguns ótimos curtas (como “Recife Frio” e “Vinil Verde”) apropria-se do mesmo estilo de narrativa para, utilizando um cenário tipicamente brasileiro, versar sobre a construção do cotidiano na vida urbana da classe média brasileira. Aqui, um condomínio no bairro do Sétubal, na capital pernambucana serve de microcosmo para o destilar das teses do diretor de que os processos rotineiros, cotidianos dispõem de elementos atravessadores e entrecortantes que trazem a reboque e constroem o perfil desse homem da pós modernidade.

Aqui, tudo é sempre interrompido, algo está sempre a acontecer, algo pequeno, insignificante, mas extremamente simbólico da condição a qual nos submetemos como moradores das grandes cidades brasileiras. A empregada que chega e quase apanha o casal pelado dormindo no sofá, o carrinho de som no meio da rua que interrompe a conversa do condômino e dos lavadores de carros, a visita que chega e atrapalha a conversa de pai e filho, o celular que toca na reunião do condomínio. Pequenos distúrbios que sinalizam para a nossa desordem cotidiana, o caos sutil que se instaura sorrateiro em nossos processozinhos de vida-sendo-vivida.

Mendonça escolhe catalisar esses pequenos desarranjos através de um elemento que tem um papel neurotizante no absurdo da rotina moderna: o som. É através do barulho, do ruído, do latido do cão, do ronco da máquina de lavar ou do aspirador de pó, do tune irritante dos aparelhos celulares, das TVS de plasma com som stereo. O barulho enleva os sentimentos de confusão, estresse ou desorientação, assim como também encobre aqueles (in)desejados como os gemidos de prazer por causa de masturbação ou a degustação de um cigarro de maconha.

A conexão com um passado não muito distante acontece no inicio da projeção quando fotos do que parece ser uma comunidade rural, provavelmente da zona da Mata Pernambucana, área historicamente marcada pela presença de plantações de cana, engenhos e muito trabalho escravo é intrinsecamente interligada pelo corte abrupto que conduz ao estacionamento de um condomínio do Recife e a câmera acompanha uma garota nos patins e um garoto em sua bicicleta. A duas sequencias aparentemente díspares marcam a introdução a primeira das três partes da película chamada de “Cães de Guarda”. Daí, a câmera começa a testemunhar os pequenos disparates do cotidiano dos condôminos que, ao longo da extensão do filme, vai moldando-os e tornando-os mais escuros, complexos e revelando muito de suas verdadeiras motivações.

Estas elaborações nunca, com exceção do final do filme, irão perpassar por reviravoltas na trama ou elementos necessariamente extraordinários. Aqui nunca há pausas para uma sequencia videoclip ou uma chuva de sapos, como em “Magnólia”. E a lentidão na narrativa é deliberada pois ela serve exatamente para demonstrar a força e o poder nuclear dos desdobramentos do cotidiano. O diretor esconde essas camadas por trás de um suposto arrastar da narrativa, um passeio pelo aparentemente desinteressante dia-dia de pessoas como eu e você. E é nesse aspecto que, em minha opinião, reside a genialidade do filme do filme: modernizar uma discussão antiga sobre a evolução das cidades, a qualidade de vida de pessoas que se espremem em condomínios com regras de segurança cada vez mais rígidas.

Isso é demonstrado pontualmente como na sequencia da reunião do condomínio: a ineficiência do recepcionista noturno é demonstrada por um vídeo feito por uma criança através da câmera de um aparelho celular. Diante da evidência inconteste, os condôminos decidem demiti-lo, mesmo sob os protestos de um único morador que acha tudo aquilo “escroto”, descartar alguém que prestou serviços a vida inteira por causa de um telefone celular nas mãos de uma criança.

A atitude do condomínio, personagem essencial na condução do fio narrativo, é um amalgama da tese de Mendonça: a paranoia dessa era tecnológica, informatizada, altamente imagética e visual, é fruto dos moldes perversos que a máquina tem irresistivelmente operado nas cabeças das pessoas. Vivemos numa ditadura do virtual, da imagem, do olho que não vê, que não testemunha para liberar, para ofertar outros horizonte, mas para servir a desígnios muitas vezes niilistas desta geração que se faz conter nas vias do virtual. Sutilezas essas tornam o “O Som ao Redor” um filme riquíssimo, detentor de uma capacidade atômica em denunciar as facetas de nossa organicidade, nossas aglomerações, nossos tratados implícitos de vivências.

É bem verdade que tudo está devidamente soterrado debaixo de camadas e camadas de supostos amontoados de sequencias supostamente frívolas e cansativas. É bem capaz que, alguns caiam na gestão enganosa de classificar o filme como maçante e perca a oportunidade de escavar as imagens em busca das mensagens que Mendonça Filho está disposto a comunicar. Os títulos das três partes fazem referência aos serviços de segurança de bairro oferecido por Clodoaldo, personagem vivido pelo ótimo Irandhir Santos de “Febre do Rato” o único personagem da trama que parece ter um agendamento, fato revelado somente na última sequencia e sinalizado simbolicamente na lírica sequencia do banho de cachoeira na fazenda do velho Francisco, personagem de W. J. Solha, um velho proprietário de fazenda e um bairro inteiro no Recife, onde se passa a ação do filme, perfeita emulação dos senhores de engenhos do Pernambuco colonial.

É quase uma pena ter que admitir que “O Som ao Redor” é um filme pra poucos. Isso por que, apesar de muitas das suas figuras serem perfeitamente digeríveis as plateias brasileiras, nem todos estão dispostos a ir ao cinema ou sentar no sofá e ser uma arqueólogo das imagens. Este tipo de filme é feito pra isso. Para o bem ou para o mal.

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