14 de abril de 2014

Resenha do Filme: Noé

Por Eripetson Lucena

Acalentar um projeto pessoal por um longo tempo deveria ter sérias implicações para o seu elástico período gestacional: para mentes férteis do cinema o fator “recurso” não deveria ser, neste processo, inversamente proporcional a capacidade criativa investida no mimo. O cinema indie já provou que nem tempo, nem dinheiro obstaculizam necessariamente a feitura de obras relevantes e nada mais irônico que (agora) citar Darren Aronosfski como importante nome que simboliza a realidade supra citada.

Sem maiores delongas, basta somente citar filmes como “Pi” e “Réquiem Para um Sonho” para ilustrar o processo. Pois parece que toda a carga libidinal dispendida e desembocada em “Noé”, o mais novo rebento do diretor foi pulverizada no Ararat labiríntico onde ele (assim como a arca) o fez repousar. Para mim, o que mais evoca uma forma refinada de fazer filmes é o nome do diretor quando sobem os créditos. Entre devaneios bíblico-teologico-tolkenianos, interpretações prejudicadas por um roteiro preguiçoso demais para ir além de concepções rasas mais preocupadas em sinalizar as inúmeras elipses que explorar personagens pré-existentes riquíssimos, arquétipos absolutos de nossa subjetivação, caricaturas (Hopkins irrelevante), monstros de pedra que beiram o risível (principalmente se você tem os Ents da Terra Média como referencia), sobram os efeitos especiais e a tentativa do diretor de vender o filme como obra de arte. Desculpem, mas isso é pouco.

Não ví Aronosfski alí. É lamentável ver um diretor que goza de um certo prestigio exatamente por sua capacidade criativa ver sua assinatura se diluir numa obra que, pelo resultado final, poderia ter sido feita por qualquer diretor engajado com a feitura de filmes em escala industrial. 

Apesar de ter de dar ouvidos as inócuas discussões teológico-filosoficas levantadas pelos grupos religiosos que esperavam um filme feito para eles substituírem a homilia/pregação de domingo indo ao cinema invés da igreja, este não é o critério utilizado para atestar que “Noé” é apenas um filme razoável. O que se espera de um bom filme? Um nível de dramaturgia que vá além da força brutal do imagético ou de recursos técnicos e confira um aprofundamento na trama que não condescenda com o expectador, mas que o engaje exatamente pela sua força humana. “Noé” carece deste aspecto, apesar de abundar em efeitos especiais. 

As interpretações estão bem aquém do talento de atores experientes envolvidos no projeto (três Oscars reunidos) e este monocromatismo dramático é culpa muito mais da pena de Aronofski e Ari Handel (que escreveram o roteiro) do que propriamente dos atores. É deprimente ver Jennifer Connelly tão mal aproveitada (alguns closes da atriz são patéticos) e Anthony Hopkins elevando à enésima potência as caricaturas exaladas nos seus dez últimos filmes. Eles dois parecem ser os mais problemáticos, mas Crowe entrega uma interpretação apenas correta embora que responsável por alguns momentos de rara sensibilidade na película. 

É claro que há sugestões ruidosas de “correção”/ “adequação’ de relatos bíblicos por elementos digamos mais plausíveis numa clara tentativa de agarrar a nação dos descrentes, o que mostra que o tratamento contemporâneo dado a uma narrativa tão difundida e respeitada não é todo mal e consumiu os suspiros mais criativos do diretor/roteirista(s). A água que, por um momento flui do chão, a ajuda dos guardiões na fabricação da arca são alguns exemplos notórios. Eu particularmente não sei até que ponto um roteiro totalmente subserviente a narrativa bíblica ajudaria no alcance do resultado final e não vejo esta tentativa de construir um esqueleto secular para a trama como pecado. Isso talvez seja o aspecto menos negativo do filme.

O erro é confiar na extensão dos tentáculos da narrativa bíblica e não redimensionar os personagens com a profundidade requerida, valendo-se dos préstimos do nosso inconsciente coletivo ou mesmo da suposta importância de efeitos especiais. O Noé de Aronosfki não doutrina como queria os religiosos, nem tão pouco engaja como um cinéfilo habituado a seu nível de comprometimento desejaria. Isso coloca a obra num limbo emocional difícil de ser resgatada: não agradou nem gregos nem troianos. 

Talvez um dia, como resultado de sua velhice, Aronosfki repense o tratamento dado a seu filho bastardo “Noé” e assim como Kubrick (guardadas as devidas proporções do paralelo) decida que “Spartacus” diz quase nada de sí e extirpe-o de sua filmografia. O mais constrangedor é que Kubrick era jovem e inexperiente quando fez “o filme de Kirk Douglas”. Aronosfski tropeçou depois. E pra esses, é difícil ter perdão.

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