14 de maio de 2014

Resenha do Filme: O Passado

Por Eripetson Lucena

Cinema bom talvez seja a arte de se repetir com competência. Enquanto indústria, e essa caraterística conta desfavoravelmente a sua expansão e reconhecimento enquanto arte de fato, o cinema, com seus cento e poucos anos, transformou-se, dentro da lógica de mercado, numa espécie de máquina de clonagem. É, na opinião de quem vos escreve, cinema enquanto indústria é uma arte contestável. E enquanto comercio, é deplorável.

O modelo de feitura de filme estadunidense é tão incrivelmente tributário de quem realiza investimentos financeiros que o senso de arte e independência tem que servir aos interesses mercadológicos dessa corja. O cinema só não caiu no descrédito absoluto por que: primeiro, no seu curto tempo de vida, obras-primas incontestes já foram produzidas, de forma a reverter este esquema perverso e segundo: a boa arte permite-se a recriação a partir dos seus elementos primários.

“O Passado”, novo filme do cineasta iraniano Asghar Farhadi pode ser encarado como uma continuação do rebento mais regional e particular do Oscarizado “A Separação”, seu filme anterior, um exercício narrativo esplendido, que arrebatou meio mundo e mobilizou os juris de todos os prêmios que tomou parte há dois anos. Nesta sua nova e apavorante incursão ao micro-cosmo das relações familiares, ele não somente retoma com maestria a temática do seu filme anterior mas consegue dar seguros passos adiante do fio condutor que havia interceptado no “A Separação”.

Em termos de estrutura narrativa, Farhadi é um maestro. Poucos diretores conseguem transitar tão bem do universo da escrita para a direção (Nolan representa bem esta estirpe no universo mais comercial Hollywoodiano) e a pena do iraniano já provou ser uma das mais criativas, humanas e acertadas do cinema atual. Desde do excelente “Procurando Ely” testemunhamos o incrível talento deste realizador. Entretanto, ironicamente, é exatamente no “salto” que se dá do seu penúltimo para este último filme, duas obras tão parecidas, que constatamos a assertiva do inicio deste texto.

Ele se repete de forma brilhante e absolutamente necessária. “O Passado” ainda é incrivelmente relevante e traz frescor ao tema, especialmente no que tange a sua pungência universal, visto que ele transfere seu olhar para uma nação ocidental e traz a reboque em sua discussão das agruras familiares e relacionais, problemáticas outras diferentes ao escopo iraniano do filme anterior. A intercessão entre as obras co-irmãs é exatamente o seu valor humano e a profundidade incisiva com que os personagens são desenvolvidos, e a capacidade de se apropriar de uma estrutura que pode soar formulaica a princípio e conceder ares de montanha russa das emoções afloradas.

Como no seu filme anterior, Farhadi depende incrivelmente de um elenco competente para levar a cabo filmes com esta estrutura. E aqui, a triangulação que se estabelece, resultado do trabalho milimétrico de Bérénice Bejo, Ali Mosaffa e Tahar Rahim é algo de extraordinário. Ela saiu do ultimo Festival de Cannes com a Palm D’or nas mãos e a película estabeleceu uma trajetória igualmente digna da Palma e só foi sucumbir no último momento para o magnetismo polêmico de “Azul é a cor mais quente” que acabou ganhando a láurea máximo este ano. É uma obra acabada, densa e especial.

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