26 de maio de 2014

Resenha do Filme: Tatuagem

Por Eripetson Lucena

O cinema Novo escancarou uma estética caótica, mas de extrema sofisticação imagética e de texto ainda que, de certa forma datada por conta de um provável (mas necessário, em minha opinião) ranço que o vinculara politico-ideologicamente as filosofias de extrema esquerda que permeavam o mundo nas décadas de 50 e 60. Isso, antes de diminuir as obras, demonstrava uma grandiosa consonância de cineastas como Glauber Rocha com as questões de seu próprio tempo e confirmavam uma relevância estupenda de seus filmes.

Este preambulo objetiva vincular o imaginário que permeia o filme de estreia do pernambucano Hilton Lacerda “Tatuagem” ao indefectível legado de Rocha e do cinema novo. Lacerda, responsável pelos roteiros dos filmes de Claudio Assis (outro cineasta que mapeou Pernambuco na vanguarda da produção de um cinema de novos direcionamentos de temas e de estéticas no Brasil) aventura-se destemidamente por construir uma obra ousadíssima em cima dos ombros de gigantes. O filme só não se mostra assombrosamente original e estonteantemente inebriante por que já vimos a acidez, a ousadia e a destreza da pena de Lacerda nos filmes de Assis, especialmente em “Febre do Rato” onde o texto, altamente subversivo e anárquico, casa-se de forma magistral com o apuro das belíssimas imagens em branco-e-preto de uma Recife decadente, pútrida, mas cheia de poesia. Um delírio visual que choca como poucos.

O roteiro é tão acertado que cada metáfora para contar uma história de amor marginal e improvável funciona com uma precisão de relógio suíço. A companhia teatral, material subversivo perfeito devido ao enfrentamento com a ditadura castrante da época, a atração irresistível entre um homossexual e um soldado, improvável amalgama de dois universos dispares e conflitantes, as teses de liberdade e liberação, que vem a reboque naturalmente na trama, sem que seja necessário explorar em demasia as agruras sofridas por mambembes como os retratados no filme, fazendo com que a obra, talvez derrapasse em um didatismo incomodo e desnecessário, já que o direcionamento da narrativa sempre foi o descortinar de um relacionamento amoroso. Tudo isso, sem o peso habitual colocado como teses radicalíssimas de rupturas com o social, destiladas a exaustão ao longo de “Febre de Rato”. Entretanto, a ode ao caos e a anarquia também estão presentes em “Tatuagem”. Aqui, no entanto, o elemento revolucionário máximo reside na liberação das ideias e dos ideias, que ganha fisicalidades de forma brilhante em traços da anatomia humana, conforme cantada pela trupe em momentos pontuais do filme. Talvez esta referencia ao alardeado anus seja o miolo balburdico da tese de Lacerda e traga em sí, toda a virulência de materiais como este.

Ou seja: difícil ver no cinema nacional materiais onde tudo funcione de forma tão harmônica. Da música que serve a trama de forma a endossar seus desdobramentos (que sequencia linda e estupenda quando o sensual Clécio canta “Esse cara” do Cazuza, num momento sintomático onde a trama irá tomar seus rumos definitivos), a fotografia, ao roteiro magnifico, as interpretações acertadíssimas, destaque para o estupendo Irandhir Santos, que tem incorporado estes arroubos que o magnifico cinema Pernambucano tem exalado sob a produção nacional . Parece que Lacerda consegue da um passo a frente ao belíssimo “Madame Satã” de Karim Airnouz, que, desculpem a heresia cinematográfica, diante da grandeza estética e de narrativa de “Tatuagem” parece ficar nas intenções e dever a este, mesmo ainda sendo um filme grandioso. 

Se há obras que devem ser realizadas em constante e vivo dialogo com o século XXI, mesmo sendo um olhar sob o Brasil da década de 70, “Tatuagem” se inscreve exata e brilhantemente neste registro. Recuso-me inclusive a inserir o filme dentro de um contexto de embate ou resistência. Se há guerra dentro das mentes que ainda estão imbuídas na homofobia, isso parece se localizar para além do filme. Esta fora dele. Lacerda faz uma obra para um Brasil que ainda não chegou. Dai resulta o seu brilhantismo e importância. Um dos melhores filmes feitos neste pais nos últimos anos.

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