10 de março de 2014

Resenha do Filme: Amor Pleno

Por Eripetson Lucena

Em certos momentos dos seus filmes mais recentes, Terrence Malick sequestra seus protagonistas e subvertendo a ordem já totalmente alteradas de suas narrativas, planta-os em lugares aquém-além, sejam eles ermos, pastagens, plantações, marés, desertos, locações aparentemente estranhas ao fluir da história que não poucas vezes reforçam o torpor e a desorientação causados nos espectadores menos habituados a seu modus operandi.

Estas abduções mostram-se mais frequentes desde “Além da Linha Vermelha” e servem, dentre outras coisas para colocar a natureza como elemento primordial de todas as suas narrativas e alimentar, através do imagético, a tese que estamos, em maior ou menos grau, todos perdidos neste mundo. O recrudescimento do elemento natural em seus filmes estabelece uma relação explicita da imensidão da criação com os dramas humanos retratados, colocando estes últimos, apesar do seu apelo estarrecedor, em ampla desvantagem à primeira, conectando a nossa condição humana a uma engrenagem irresistível que responde por dois caminhos revelados no inicio de seu portentoso “Árvore da Vida”: o da natureza e o da graça.

A forma como responderíamos a um dos dois apelos ou mesmo aos dois condensa as teses elaboradas pelo cineasta em filmes. Em “Além da Linha Vida”, em meio aos caos moral que se abate aos soldados durante a batalha pelo controle da Ilha de Gualdacanal, no pacifico na Segunda Grande Guerra, a fala de um dos soldados parece sumarizar o pensamento do cineasta: ‘Que guerra é esta no seio da natureza?”. O deslumbre e a iluminação do aspecto natural mobiliza mais que as baionetas, metralhadoras e granadas.

Os elementos característicos estão todos aqui em “To the Wonde”, o novo filme do cultuadíssimo diretor americano: o voice-over, a abordagem filosófica das agruras da humanidade, a câmera que flagra momentos estonteantes na natureza, mas que também se movimenta em frenesi em busca dos rompantes de seus personagens, a explosão da música erudita que carrega o espectador pelos devaneios/divagações existenciais das tramas. 

“To the Wonder” é basicamente sobre ausências: aquelas que são às vezes mais fortes que presenças e que conduzem toda a experiência humana. As historias de três pessoas tem entroncamentos suficientemente poderosos para que o diretor/roteirista verse sobre a natureza do amor e a ausência de fé/Deus. Ben Affleck vive um engenheiro que se apaixona por uma europeia na França e faze-a imigrar com a filha de 10 anos para os Estados Unidos. Javier Bardem está na pele de um padre angustiado, esmagado pela dúvida de Deus e que busca desesperadamente pacificar sua consciência através do trabalho comunitário. O padre Quintana é um amalgama dos personagens de Malick: ele mais se assemelha a um zumbi que vaga errante nas ruas da pequena comunidade e sabe que, a não ser que volte seus olhos a beleza escondida que há no universo, a não ser que ele perceba o sutil preâmbulo de todas as coisas e que mesmo os bons sofrem na vida exatamente por serem bons, ele não encontrará o alívio da alma.

E isso muitas vezes implica em dar um salto de fé estrondoso, o salto no escuro de Kierkergaard, fonte dos dilemas do personagens de Affleck, imerso também em um mar de dúvidas a respeito do seu futuro com a parceira. O que se esconde por trás desses momentos de desespero é o que Malick se esforça por explicitar em seus filmes/teses: que o belo, o sentido está oculto aos olhos de quem somente segue o fluxo do mundo e se encanta com o aparente transe que a vida oferece a quem se faz apenas desatento transeunte. Há muito mais e a natureza está gritando aos zumbis da existência. Fascinante e subversivo.

O fato de o filme iniciar e terminar na Abadia de Mont-Saint-Michel diz dos dilemas de fé envolvendo o trio central. Mesmo que não seja fé religiosa, mas é fé para alavancar o escuro da vida e seus enfrentamentos. Também figurativas e cheias de significado, as sequencias do casal em Paris, cheias de luz, alegria em contraste com aquelas cheias de tensão nos Estados Unidos, onde o personagem de Affleck também tem que lidar com a contaminação do solo provocada por uma companhia em sua comunidade. O solo americano contaminado.

Ben Affleck entrega uma interpretação sensibilíssima, conferindo o mutismo e a frieza de seu personagem (ele praticamente não tem falas no filme e tem que apoiar sua performance em expressões e linguagem corporal) de forma surpreendemente convincente.

Mais uma vez ouviremos a velha ladainha de que Malick é vago, visual demais e que tem a pretensão de apoiar sua obras em abstrações filosóficas que mais acabam por prejudica-las. Sempre ví sua obra tentando me livrar desse ranço da critica. Para além dos temas e do estilo, “To The Wonder” pode ser circunscrito como um párea perfeito do anterior “Arvore da Vida” e até mesmo de ‘Além da Linha Vermelha”. Eles estão para o que está além da imagem e a característica do evocativo, tão incomum no cinismo e nas estilizações do cinema contemporâneo, é colocada como atividade primordial para se assimilar uma obra assim. E este tipo de filme, só Terrence Malick consegue fazer.

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